Figura 1 - Carta Regia
“Bernardo José de Lorena, Governador e Capitão General da Capitania de Minas Gerais. Amigo. Eu o Príncipe Regente vos envio muito saudar. Atendendo a grande falta que há de Cirurgiões hábeis, e inteligentes nessa Capitania, por nela não haver Aulas Públicas, em que se expliquem as doutrinas respectivas a esta Faculdade; e conformando-me com o vosso parecer, e do vosso Antecessor, constantes dos ofícios, que subiram à Minha Real Presença com datas de vinte e quatro de maio, e sete de outubro de mil setecentos e noventa e sete: sou servido estabelecer no Hospital de Vila Rica uma Cadeira, Anatomia e Arte Obstetrícia; nomeando para ela o atual cirurgião-mor do Regimento de Cavalaria de Minas Gerais, Antônio José Vieira de Carvalho, por nele concorrerem as circunstâncias, e requisitos necessários, para bem reger a dita Cadeira, ao qual estabelecerei o competente ordenado, que deve ser pago pela Junta da Fazenda dessa Capitania. Escrita no Palácio de Queluz aos dezessete de junho de mil oitocentos e um.”
Príncipe.
Figura 2 - Folha de Rosto de livro - Observações sobre as Enfermidades dos Negros: suas causas, seus tratamentos, e os meios de as prevenir. Leia-se: “…Traduzidas na língua portugueza, debaixo dos auspícios e ordem de Sua Alteza Real, o Príncipe Regente N. S., por Antônio José Vieira de Carvalho, cirurgião mór do regimento de Cavalleria Regular da Capitania de Minas Geraes; e lente de anatomia, cirurgia, e operações no Hospital Real Militar de Villa Rica…”.
António José Vieira de Carvalho nasceu em Atalaia, Vila Nova da Barquinha, em 1781. Aos 27 anos de idade, iniciou-se como ajudante de cirurgião-mor. Além da Medicina, Carvalho era proprietário de uma fábrica de cerâmica em Saramenha.
Segundo documentação do Arquivo Ultramarino de Lisboa, o Governador Lorena o possuía em muito apreço, o que favoreceu sua nomeação em 1801 (Pieruccetti F. Em Minas, o início do ensino médico no Brasil. Ver Med Minas Gerais. 1992; 2(3):191-4)
Curiosamente, e talvez como retribuição da Coroa à tradução, a nomeação de Carvalho ocorreu no mesmo ano da publicação da versão portuguesa da obra de Dazille (Eugênio A. Ilustração, escravidão e as condições de saúde dos escravos no Novo Mundo. Varia História. 2009; 25(41):227-44.)
Jean-Barthélemy Dazille, cirurgião francês das tropas na ilha de São Domingos, teve seu livro “Observações sobre as Enfermidades dos Negros: suas causas, seus tratamentos, e os meios de as prevenir” publicado em Paris em 1776 pela Coroa Francesa. E 25 anos depois, Carvalho, com o patrocínio da Coroa portuguesa, lançou a tradução do mesmo em Lisboa. (Nogueira A. Universos coloniais e ‘enfermidades dos negros’ pelos cirurgiões régios Dazille e Vieira de Carvalho. Hist Ciências Saúde – Manguinhos. 2012; 19:179-96).
No espaço colonial francês, o manual de Dazzile, escrito com base na sua experiência profissional em São Domingos, destacou-se por ser um dos primeiros textos médicos cujos conhecimentos poderiam contribuir para a diminuição dos altos índices de mortalidade dos escravos. Dazille tentava fazer os colonos reconhecerem que a diminuição desses índices dependeria da sua compreensão da necessidade da humanização dos seus métodos de exploração do trabalho escravo. (Eugênio A. Ilustração, escravidão e as condições de saúde dos escravos no Novo Mundo. Varia História. 2009; 25(41):227-44.)
Vieira de Carvalho era leitor atualizado e cosmopolita (falecido em 1818, o testamento13 do cirurgião inclui biblioteca com 127 títulos de importância crucial para a Medicina da época), sendo que, movido pelas mesmas preocupações de Dazille, deixa claro – em nota inicial de sua tradução – que não apenas a alta mortalidade dos escravos, mas também o sofrimento destes, eram fatores que justificavam seu impresso: Felizmente o meu destino me havia levado a occupar nas Minas Geraes o emprego de Cirurgião Mór do Regimento de Cavalleria, que guarnece a Capital daquella Capitania; onde exercendo, a par da minha profissão, a Medicina prática, pude vêr com os meus mesmos olhos, quanto a especie humana soffre na inumerável multidaõ dos Negros, que alli transporta a escravidaõ, e o commercio. A mudança de clima; a differença de tratamento; hum trabalho continuo, e desmedido; e até a fome raríssimas vezes interrompida; junto à triste consideração do seu penoso estado, saõ outras tantas causas das singulares e gravissimas enfermidades, a que he sujeita entre nós esta raça desaventurada de homens; e que fazendo-lhes a vida pezada, e adiantando-lhes a morte, levaõ à sepultura o melhor dos cabedaes daquella, e das outras Colonias da America Portugueza; enterrando com elles o mesmo ouro, que os seus braços haviaõ desenterrado; e seccando assim na sua origem hum dos primeiros mananciaes das riquezas da Coroa, e do Estado. Estimulado pois desta fatal experiencia, e do sincero, e ardentissimo desejo de me dar todo ao serviço de Vossa Alteza Real, me subministrou o meu zelo a lembrança de traduzir para a Lingua Portugueza o Tractado […].
Ancorado na sua experiência em terras coloniais e também em conhecimento teórico, António não se contentou em ser mero tradutor da obra do cirurgião francês. Ao longo das páginas de “Observações sobre as Enfermidades dos Negros”, Carvalho introduziu notas explicativas, ambientando o leitor ao contexto das Gerais. Como exemplo, quando Dazille comenta que a alimentação dos negros era baseada em raiz de mandioca pisada e geralmente malcozida, Carvalho expõe que: No Brazil, especialmente em Minas Geraes usaõ os Negros de differente alimento por que em lugar da mandioca, elles tem o milho, que depois de moído em moinhos proprios, e peneirado o cozem simplesmente com água, mexendo-o atè o ponto de se formar huma massa em boa consistencia, a que chamaõ angù […]. Há também notas em que Carvalho dialoga sobre sua experiência na prática cirúrgica e de dissecação. Por meio de suas observações, Vieira de Carvalho deixa-se indiretamente classificar como profissional que atua em causa da humanidade, numa postura típica das fronteiras do Iluminismo. Porém, diferentemente dos objetivos humanísticos e científicos do cirurgião, sustenta-se a ideia de que a Coroa Portuguesa objetivava, tanto com o apoio à tradução da obra quanto com a criação das Aulas de Anatomia de Vila Rica, apenas aumentar o tempo de vida útil dos escravos, tentando evitar um colapso da mão-de-obra colonial em momento no qual o comércio mundial era desconexo com o tráfico escravocrata. Esse momento culmina, inclusive, com a proibição do Tráfico Negreiro em 1850, pela Lei Eusébio de Queirós.
Transcrição da Obra: História da Medicina - Antecedentes Históricos do Curso de Medicina da Universidade Federal de Ouro Preto
Historical background of the Course of Medicine at the Federal University of Ouro Preto Márcio Antônio Moreira Galvão, Breno Bernardes de Souza
DOI: 10.5935/2238-3182.20140110